ABSOLUT 2140 #2

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Brett Amory Simone Campos Dennis Feddersen Yago Hortal Tricia Keightley Dave Kinsey Pim Leenen Ana Paula Maia

MOMO Santiago Nazarian Alexander Peverett David Quiles Guill贸 Yoshi Sodeoka Joca Reiners Terron Emiliano Urbin Nicola Verlato Zimoun


#002


O planeta Terra está dividido em dois hemisférios geográficos. Quase 9 bilhões de pessoas moram nos grandes centros urbanos. Restam apenas setenta árvores sobre a superfície do planeta. Hoje, no sétimo dia do sétimo mês do ano 2140, um vírus letal identificado como “Kinsey” atingiu a COM.

O mundo entrou em pane.



MOMO


MOMO


Há mais de cem anos, um apagão mundial causado pelo uso e abuso das mídias sociais marcou o nascimento da COM. Após os sistemas se reiniciarem, a rede despertou, tomou consciência de si e se transformou numa entidade a serviço de todos os conectados. Em poucos meses a COM, dirigida por seus milhões de usuários, tomou conta das instituições, de governos nacionais a locais, passando a gerenciar ABSOLUTamente tudo em nível global, incluindo comunicação, educação, recursos naturais e controle de enfermidades. Uma nova era se iniciou e hábitos ancestrais foram abandonados. Ninguém mais se comunicava verbalmente, enquanto violência e libido foram controladas. Depois de muitas gerações, o trabalho passou a ser distribuído e avaliado através da COM de modo igualitário, estabelecendo como meta a realização das tarefas com cem por cento de eficácia, ocupando o indivíduo somente alguns minutos diários. Hoje, no sétimo dia do sétimo mês do ano 2140, um vírus letal identificado como “Kinsey” atingiu a COM. Para proteger os usuários, a COM deixou uma última mensagem e se autodesligou. A população foi relegada aos próprios recursos, e aos seus principais defeitos. Entre os danos colaterais, o maior deles está relacionado ao arquivamento de dados: noventa por cento da população sofre perda de memória recente. Entre os dez por cento restantes que conseguem lembrar, a preocupação é tentar ocultar essa capacidade.



ABSOLUT 2140 São Paulo, Hemisfério sul


Tricia Keightley



Tricia Keightley



#014


1 prepared dc-motor on grid, battery - Zimoun

O problema é que eu me lembro. E a memória cria raízes permanentes, mesmo em silêncio, o mesmo toque repetitivo. Ecoando eternamente. Para quem se esquece, deve ser lindo ver-ouvir-receber tudo como da primeira vez. Mas para mim é uma tortura que não posso receber sorrindo. Por isso estou sozinho. Longe de loops. Trancado há sete dias e sete noites neste cubículo. Eu estou falando do tédio, é claro. Que se instaura nos raros com consciência e lembrança. Que cresce como as poucas árvores que ainda restam neste hemisfério. Que se espalha dentro do meu cubículo enquanto a vida lá fora desmorona.

“Não há motivo para pânico.”

O fato de o pânico não ser um sentimento palpável, como não é sentimento algum, faz pouca diferença. A repetição faz a coisa acontecer, para mim. Para eles talvez não, eles que não podem lembrar. Sou eu que recebo seguidamente e de forma automática “não há motivo para pânico”, “não há motivo para pânico”, e faz tanto tempo que começa a me preocupar.


Tricia Keightley




Tricia Keightley


Tricia Keightley



23 prepared dc-motors, grid - Zimoun

O problema é que eu me lembro. E a memória cria raízes permanentes, mesmo em silêncio, o mesmo toque repetitivo. Ecoando eternamente. Para quem se esquece, deve ser trágico ver-ouvir-receber as notícias sempre novamente pela primeira vez. Mas para mim já se estabeleceu como tédio e rotina neste cubículo. Trancado sozinho. Há sete dias e sete noites, sem falar com ninguém. O tédio foi se fixando por repetição, criando raízes e brotando em ramos que tento esconder, ramos que tento podar, por isso estou aqui. Árvores são uma raridade e não quero ser eu motivo para alarde, busca, perseguição. Cercado como uma sequoia, tombado como um carvalho. Eu mesmo rego meu tédio, abro frestas da janela para o sol de inverno alimentá-lo. Como a luz só entra pela janela no inverno, penso o que fazer para alimentar meu tédio no verão. Buscar a luz com um jogo de espelhos. Comprar luzes de raios artificiais. As folhas já estão roxas e vistosas. O cubículo já está tomado por seu perfume. O problema é que o tédio atrai insetos. O problema são as raízes e a umidade…


#023



Dennis Feddersen



Dennis Feddersen


#028


24 sound contributions in automat - Zimoun

O tédio vai se fixando — e estamos num prédio de apartamentos! —, são raízes superficiais, como tudo nesta cidade, mas ainda são raízes. Invadem meu espaço, racham o piso, ameaçam entrar no apartamento do vizinho. O tronco toma minha sala, galhos sobem pelas paredes. Folhagens ocupam os lugares de minhas reproduções de Zimoun. O tédio não pode ser domado, raízes não podem ser contidas, e dia após dia espero uma notificação de que estou perturbando a ordem desses cubículos. Mas o tédio é uma árvore frutífera, dizem, e tanto incômodo deve dar frutos. Se eu continuar a alimentá-lo, se ele continuar sob controle, posso em breve provar de um suco raro que ninguém mais será capaz de fazer. Um suco raro que só eu poderei sorver. E, com ele, vitaminas que só eu poderei ingerir. Me fará mais forte, me fará mais vivo, se eu puder me alimentar do tédio que cresce dia a dia comigo.



Dennis Feddersen



Dennis Feddersen


25 woodworms, wood, microphone, sound system - Zimoun

Eu vigio uma árvore, às vezes de manhã, às vezes de tarde. É quando ela está mais radiante, transbordando em fotossíntese. Tocamos XXXXX, seguidamente, e ela responde com suas folhas espalmadas, me encharcando em oxigênio. XXXXX é o som de nosso loop, e tocamos para que todos saibam quem faz nossa árvore crescer, quem a protege e a preserva, em que solo ela está enraizada. Verdade que só de manhã e de tarde, costumava ser diferente. Até dois anos atrás a árvore era nossa dia e noite. Dia e noite tocando XXXXX num volume estridente, mas é preciso ser político. O loop vizinho YYYYY veio reivindicar direitos de fronteira. As raízes tomam seu próprio curso, seguem o fluxo de canais subterrâneos, lençóis d’água. E YYYYY passou a acreditar que a árvore invadia seu território, vivia de seu território, lhe pertencia. Pertence a eles de noite, a nós de dia. Mas o que é uma árvore de noite? Apenas um organismo sufocante. Durante o dia é que ela se realiza em fotossíntese. Tocamos XXXXX seguidamente e ela responde com suas folhas espalmadas, me encharcando em oxigênio. Deixa claro a todos quem faz nossa árvore crescer, quem a protege e a preserva, em que solo está enraizada, de manhã e de tarde.


#035



121 prepared dc-motors, cardboard elemens 8x8cm - Zimoun


#038


121 prepared dc-motors, photo mount board elements 8x8cm (detail) - Zimoun

Mas o que é a noite para uma árvore? Apenas um sono inconsequente. Durante o dia é que ela se realiza, nos encharcando em fotossíntese. Tocamos XXXXX para que todos saibam a quem a árvore pertence, quem a protege, o que faz nossa árvore crescer. Verdade que as raízes seguem seu próprio curso, tomam fluxos subterrâneos, como um filho rebelde, não podemos controlar. YYYYY passou a acreditar que a árvore era sua — esposa tirando o filho de casa. Tiraram o filho da mãe, mas só durante a noite. De manhã, o filho volta ao lar. E o que é a noite para uma árvore? Apenas uma aventura inconsciente. Durante o dia é que ela se realiza, sobre nosso solo, com nossa música, sob nossa proteção, nos agradecendo em fotossíntese. Tocamos XXXXX seguidamente — e ela nos responde… Mas o que mesmo tem a dizer? Eu vigio uma árvore de noite. Uma imensa tualang sufocante. Está enraizada em nosso solo, embora tecnicamente cresça sobre XXXXX, o loop vizinho. Tocamos YYYYY a noite inteira, para que ela não se esqueça; é notória a memória das árvores. A minha também seria, se eu a pudesse deixar se notar. Eu não me esqueço. E sendo um desses dez por cento providos de memória, posso reparar em cada movimento dos galhos, das folhas, a história de seu crescimento. A árvore se comunica comigo de forma diferente, e não é apenas porque passo longas noites de tédio a vigiá-la. A árvore me entende, de uma forma que não posso denunciá-la.



121 prepared dc-motors, cardboard elemens 8x8cm (detail) - Zimoun


19 speakers in a cardboard box - Zimoun

Começou numa madrugada, um leve farfalhar, um suspiro sibilante. YYYYY tocando a toda nos alto-falantes, e eu já nem ouvindo mais — você sabe, eu posso me lembrar, então o mesmo som, a mesma música repetida exaustivamente não mais me exaure, já estou além dessa parte. A música se tornou papel de parede. Comecei a notar um ruído por trás, algo sub-reptício e rastejante — a árvore estava sussurrando? Queria eu poder calar um loop, mas não posso. YYYYY deve permanecer tocando durante todo o meu turno, mesmo que a árvore reclame. A árvore reclama? Eu não podia ouvir. Percebia que tentava se comunicar de alguma forma comigo, mas não conseguia identificar o que tinha para dizer. Talvez se queixasse de dor, tronco estirado, galho esfolado, talvez só balbuciasse devaneios. Poderia estar contando a história das árvores, uma história de árvore, algo que só faria sentido numa vida vegetativa. Mas vidas vegetativas não são o que agora todos levamos? Quem me dera poder calar um hemisfério para escutá-la.


#043



42 speakers in 6 drawers - Zimoun


#046


27 speakers in a suitcase - Zimoun

Passei a pensar que a árvore estava cantando. A árvore estava zumbindo. A árvore estava cantando algo que não combinava com nossa música. Talvez tapasse os ouvidos, gritasse a altos brados — tão altos quanto possíveis, para quem não tem cordas vocais —, tentasse de forma histérica subjugar uma música que não podia desligar. O que a árvore cantava? Esforcei-me dia e noite… não, noites e noites, noites e noites para escutá-la. Antes que eu pudesse ter certeza, antes que eu pudesse confirmar, os técnicos vieram com microfones, estetoscópios, mandaram calar o som do nosso loop para que pudessem devidamente examiná-la. Quando se fez silêncio, ficou tudo claro. Quando se fez silêncio, todos nós pudemos escutar. A árvore cantarolava XXXXX, do loop vizinho, a árvore nos traía. Era uma grande crise diplomática. Botânicos e neurologistas tentavam justificar. Ela passava o dia todo ouvindo XXXXX, afinal, e era compreensível que a melodia se fixasse em suas folhas, ressoasse em seus ramos, ecoasse em seu tronco. Mas por que XXXXX, e não a música da noite? Um pesquisador musical tentou justificar pela estrutura dos compassos a melodia de base — mas foi afastado. Ninguém queria implicar que a árvore cantava XXXXX porque, de alguma forma, era uma música superior. O chefe de segurança opinou que a árvore talvez ecoasse o som do dia durante a noite, e o som da noite durante o dia. Desse modo ela também estaria cantando YYYYY, mas quando não pudéssemos ouvir.



121 prepared dc-motors, cardboard elemens 8x8cm (detail) - Zimoun


186 prepared dc-motors, cardboard boxes 60x60x60cm (detail) - Zimoun

Até que um engenheiro decidiu expor a verdade da situação. “Por favor, chega de hipocrisia! Nós sabemos que essa não é uma árvore de verdade, e sabemos quem é o responsável…” Nossa tualang não é uma árvore. É uma construção biônica como tantas que existem por aí, apenas aprimorada. XXXXX inventou a farsa, nós fingimos que acreditávamos. Quando surgiu a suspeita de que a tualang pudesse ter ligações com nosso solo, a COM se aprofundou nas investigações. Descobriram raízes artificiais, não tão fáceis de identificar. Foi o suficiente para se estabelecer um acordo político entre os loops. Não contaríamos sobre a farsa da tualang, se a farsa pudesse ser dividida conosco. Foi assim que a árvore se tornou nossa de noite, deles de dia. Dois loops que não possuem árvores, dividindo orgulhosamente uma mentira.


#051



186 prepared dc-motors, cardboard boxes 60x60x60cm - Zimoun



80 prepared dc-motors, cotton balls, cardboard boxes 81x81x81cm - Zimoun


#056


1 dc-motor box - Zimoun

“Convocaremos uma audiência imediatamente. XXXXX precisa explicar essa palhaçada.” Quando se concordou em dividir a árvore — e sua trilha —, nada foi dito sobre ela continuar sussurrando a música do dia. Eu vigio uma árvore de noite. Uma invejável tualang cantante. Está enraizada em nosso solo, embora tecnicamente cresça sobre XXXXX. Tocamos YYYYY a noite inteira, para que ela não se esqueça. Ela sussurra nossa melodia durante o dia. Durante a noite, cantarola a melodia do vizinho, aquela que eles tocam no turno do dia. A árvore se comunica comigo de forma diferente, e não é apenas porque passo longas noites de tédio a vigiá-la. É que eu não me esqueço, sei de onde veio. Entendo como cresce, como canta e que mensagem pode passar. Ninguém mais pode saber. Esse é um segredo só nosso, só meu, o segredo das árvores. A tualang me entende, de uma forma que não posso denunciá-la.



121 prepared dc-motors, photo mount board elements 8x8cm (detail) - Zimoun



Yago Hortal



Yago Hortal



Yago Hortal


#066


Viajamos pelo menos uma vez por mês. Vivemos o momento. É preciso gravar a experiência para poder lembrar depois. Para isso basta querer. Um simples comando mental e o módulo registra tudo o que, nós, os novos turistas, estamos vendo. Os destinos preferidos são: cânions, locais de desastres, parques de diversão, parques aquáticos. Não há mais neve natural no mundo, mas há espumódromos onde dá para esquiar em espuma atóxica — frequentemente colorida. Neste momento desço o tobogã HellRide pela 183ª vez. Se eu não tivesse memória, seria a primeira. Mas eu tenho. Lembro-me de cada descida. Ou pelo menos da maioria. Minhas irmãs têm na cara a mesma expressão feliz que eu tenho que fingir. Não se lembram de cada subida. Nem das curvas do tobogã, sempre as mesmas: queda inicial, forte para a esquerda, direita, direita, esquerda, direita, queda repentina aumentando a velocidade e mergulho rápido e desorientante na água. O intervalo que fico lá embaixo é curto e ao mesmo tempo eterno. Eu nunca tenho vontade de subir. Acho que gostaria de ser uma mergulhadora. Irmãs tossindo de novo. Engoliram água de novo. Pela 183ª vez. E quando voltamos para casa, elas reveem seus registros. Indagam se eu não tenho vontade. Não, eu não tenho.



Pim Leenen


Yago Hortal


Fico passando os olhos por sugestões relacionadas ao meu estado mental.

**COM sugere: ≈Ω≈Ω≈Ω≈Ω≈Ω≈Ω≈Ω≈Ω≈ **COM sugere: YYYYY **COM sugere: Land of the Dead Dali a cinco minutos, minhas irmãs me fazem a mesma pergunta de novo. “Você não vai ver a viagem com a gente?” Reviro os olhos e suspiro. Que tédio. Elas não sentem o tédio porque não lembram há quanto tempo estamos aqui. Para elas, sentamos agora. Para mim, sentamos há exatamente quatro horas e trinta e dois minutos. Vou levantar e sair. Elas logo esquecerão que estive aqui, mesmo. Eu descobri essa palavra, tédio, na minha primeira reunião do loop. Só quem tem memória de curto prazo pode senti-lo. **COM sugere: Urban Twilight Chove. Estou de uniforme anticontaminante. Atravesso pacificamente ruas vazias, cheias de detritos. São áreas que podem estar envenenadas. Sei lá, pelo menos o meu contador Geiger nunca apita. Encontro um colega, o Yan. Daqui, seguimos juntos. A reunião do meu loop mais constante, o dos carimbos, costuma ser num setor abandonado descontaminado cuja localização é conveniente para todos. Hoje, porém, estamos indo a uma catedral. É uma reunião de reuniões. Dizem que isso fortalece os grupos. Não sei de que forma. Tenho uma forte suspeita de que simplesmente seja mais divertido, e de que digam tudo isso para ficar ainda mais divertido. Quer dizer, ninguém se importa com a gente. Não somos perseguidos. **COM sugere: Xiaobo Às vezes penso em desligar essas notificações todas. Mas tenho de reconhecer que, na maior parte do tempo, eu gosto delas. Removo o capacete assim que chegamos à tal praça da Sé. Ele me sufoca. **COM sugere: Sagrad Прекрасный Entramos na catedral, eu e Yan, com alguns grupos já em sessão. O loop Witch House estava discutindo justamente a Grimes naquele dia. Parei e ouvi o que diziam, mesmo já sabendo que ia me irritar. “Ouvir Grimes é como ouvir uma missa em latim”, tinha um comentário ao seu videoclipe, datado de 2012. “Você não tem ideia do que está sendo dito, e exatamente por isso se prende apenas à sonoridade das palavras, e entende.” Ninguém ali jamais havia ouvido uma missa, muito menos em latim. Mas todos entendiam o que ele queria dizer. Em Grimes, fragmentos de línguas diferentes e de suas sintaxes se encontravam para tecer um som único. Quer dizer. Talvez houvesse coisas parecidas, ou até melhores, antes, mas a isso ninguém tinha acesso. Enquanto isso, um dos membros repetia a frase “Grimes não raspa as pernas”, “Grimes não raspa as pernas”, abraçado às próprias pernas, balançando num tempo. Segui adiante, devidamente amolada.



Pim Leenen



Pim Leenen


Passei direto pelo loop Sabemos Contar, que dizia ter redescoberto a verdadeira matemática. Para eles, a decoreba era sublime. Admitiam apenas pessoas com memória de supercurto prazo, e expandiam sua capacidade através de vários exercícios. Geralmente, usavam um estranho aparato feito de contas enfiadas em arames e ficavam fazendo contas de cabeça. Hoje, porém, estão todos com uns cubos coloridos na mão, em roda, muito concentrados. Finalmente avisto o meu loop. Estão perto da entrada da cripta. O loop Acabou o Papel vasculha os arquivos mais recônditos da COM com um único intuito: garimpar imagens de carimbos de época. 2010-2030, para ser mais exata. O maior problema foi encontrar superfícies propícias à carimbagem. Sem a mídia papel, recorremos à nossa própria pele. À nossa e à dos outros. Depois, é só lavar. O segundo maior problema foi encontrar almofadas de carimbo e tinta. Nosso mentor, Solon, descobriu um jeito caseiro de fabricar os dois. Enzo coleciona carimbos de brinquedo, a maioria originalmente dirigida a meninas adolescentes. Usava uma almofada vermelha. Alguns de seus carimbos já vinham com almofada embutida: os que continham algum símbolo ou uma palavra só. Enzo é muito habilidoso no trato com as impressoras. É basicamente ele quem consegue programá-las para fabricar carimbos físicos a partir das imagens 2D. Marta amava os carimbos de repartições e cartórios. Gostava especialmente de carimbos com roletes de data — datas que nunca iam além de 2030. Ela gostava de girar a data, mudando-a em um dia ou um mês, e de aplicar com cuidado no braço, sem borrar, uma embaixo da outra, imprimindo uma série temporal que ia do ombro até o pulso.


#077



Pim Leenen



Pim Leenen



Pim Leenen


#084


Sonho com um mar de árvores que me engolfa e onde eu posso descansar. De dia não sinto, apenas de noite: estou muito, muito cansado. Não sei de quê. **COM sugere: Jukai (Sea of Trees) Os domos são guardados por robôs ditos jardineiros. A diretiva primária deles não é não permitir que um ser humano seja ferido. É não permitir que nenhuma árvore seja ferida. Isso significa que qualquer ser humano que ingresse sem autorização em qualquer recinto onde se encontra alguma das setenta árvores será fulminado sem mais que um curto aviso. **COM sugere: The Whispering Forest Isso nunca foi necessário. Há tantas barreiras, códigos e protocolos. A única pessoa que entra é o jardineiro-mor, para inspecionar o que os robôs-jardineiros andam fazendo. Apenas seres humanos são capazes disso — de supervisionar empregados perfeitos como se fossem capazes de errar. Procurando esse erro improvável. O ponto onde o cuidado é demais. A instrução (para os humanos) é simples: ficar dez minutos observando, e relatar. É a duração de cada turno. Tenho 143 colegas. Sou rendido por Jackson, jardineiro-mor do turno das 3h40 às 3h50 da manhã. Mas como eu dizia, robôs podem interpretar errado. Você nunca vai encontrar um robô regando um cacto, mas uma vez pegaram um arrancando líquen a laser. Faz oito anos dessa ocorrência. Tenho um log de eventos me dizendo isso, pelo menos. Mas não foi no meu turno. Eu nunca vi acontecer nada. Até ontem.



Pim Leenen


Um dos meus colegas, o jardineiro-mor do turno das 3h20 às 3h30, ingressou num dos domos acompanhado de um robô pessoal. Ele também levava uma corda. Ele passou um laço por um dos galhos. Os robôs-jardineiros interpretaram aquilo como possível ataque. Ele ignorou o alerta. Mas não foi fulminado: o robô pessoal o defendeu contra os jardineiros até acabar destroçado também. Pelo menos é isso que o log está dizendo. O homem pendurado na árvore ficou lá algum tempo. Não foi mais interpretado como ameaça, uma vez que parou de se mexer. Por causa do líquen, há oito anos, havia uma nova diretiva para os robôs-jardineiros: não remover apêndices (da mesma ou de outras espécies) às árvores, e sim imobilizá-los, indicando-os ao jardineiro-mor para posterior remoção. Encontrei-os escorando o corpo do jardineiro-mor, repetindo o aviso sobre o jardineiro-mor para o jardineiro-mor. **COM sugere: The Hanging Man **COM sugere: Hyper n. 22


#089



Pim Leenen



Pim Leenen


Yago Hortal


É difícil esconder coisas numa casa tão nua de objetos. Minha mãe, decepcionada, agita o ábaco encontrado sob a tábua do piso. Ouço seu discurso preocupado durante uns dez minutos. Mãe preocupada já é muito pior que mãe em fúria; imagina quando ela não tem memória recente. Partes inteiras do sermão começam a voltar, recicladas. Ela não se esquece totalmente porque está falando com meu ábaco na mão. Ela o vê e recomeça: — É por isso que você nunca passa tempo com a gente! Prefere ficar isolado guardando pilhas de números na cabeça! Isso não é saudável! Sua mente pode não aguentar! Por que você não arranja um passatempo mais tranquilo?

— Mãe, você já falou isso. — Deixa seu pai chegar.

— Meu pai sabe. Meu pai sabe de tudo. Ele é como eu. Ele lembra das coisas, e disfarça, por você. — Para com isso, Douglas. Claro que não. No olhar dela começam a transparecer algum choque e dor. Ela para de falar. Mas algo pior: ela repetidamente joga o olho para o canto superior esquerdo, na tentativa de lembrar alguma coisa, algo substancial, que confirme ou desminta o que eu disse. Esse movimento se repete, fica rápido, até se tornar frenético.

— Mãe. Calma. Meu pai te ama. — E você?

Abraço ela. — Eu também.

Ao soltar, destaco delicadamente o ábaco da sua mão. Na frente dela, olhando nos olhos dela, abro uma gaveta. Ela balança a cabeça, aceitando, e guardo o ábaco lá dentro. **COM sugere: Oblivion **COM sugere: Corbelled Arch



Pim Leenen



Pim Leenen



Alexander Peverett


#102


Congotropolis - Dave Kinsey

Registro o pouco que me lembro das últimas horas num pequeno gravador movido a bateria de lítio, herança de minha avó. Sempre o carrego no bolso. Há vários dias que o anoitecer chega rápido por causa do inverno. Termino de tomar uma xícara de café e saio da lanchonete. Caminho alguns quarteirões em direção à catedral da Sé. Passo pelo obelisco Peverett, um imenso holograma em memória ao início dos tempos registrado na obra Chateau on the Lake. Empurro a porta, mas está trancada. Encontro uma janela nos fundos da catedral e entro por ela. Algumas pessoas conversam reunidas em torno a Congotropolis, uma das obras do Kinsey que mais nos fascinam, e também que nos atemorizam. É diante dessa magnífica obra que aprendemos todos os dias que, assim como nossa memória, a vida é breve e está em declínio, aproximando-se da morte, dia após dia. Tudo o que temos é o que vem a seguir, já que o passado não subsiste em nós.



Alexander Peverett



Akhal Teke - Dave Kinsey


Riot & Reason - Dave Kinsey


System Failure - Dave Kinsey

Um homem bate palmas, pedindo atenção, e todos olhamos para ele, que afirma ter um exemplar raro de System Failure, do Kinsey. O famoso quadro que esteve perdido por vários anos. Kinsey produziu três obras que foram proibidas de circular na COM: Akhal-Teke, Riot & Reason e System Failure. Compartilhar essas obras podia bloquear ou danificar todo o seu sistema. O conjunto de três obras é conhecido como “O despertar”. Kinsey desapareceu. Segundo relatos, foi assassinado ao vislumbrar o que aconteceria com a humanidade em sua última obra, jamais concluída. Outros dizem que Kinsey enlouqueceu, alguns acreditam que o vírus detectado na COM foi uma de suas intervenções artísticas, ou coisa do tipo. Há muita especulação. O homem liga um projetor e deparamos com a imagem projetada no teto da catedral. É uma visão perturbadora e ao mesmo tempo nos revela tanto. Vemos o que somos e o que éramos. Todos ficam em silêncio, tomamos fôlego e um pouco de consciência.Tão pouco nos restou. Nessas reuniões juntamos cacos, lampejos e vestígios. À medida que minha consciência aumenta, minha memória me faz ser um tipo diferente a cada dia. Quanto mais me lembro, mais me transformo.



Alexander Peverett


Alexander Peverett



Deux - Dave Kinsey

Todas as manhãs acordo cansado, sedento e com dores no corpo. Sempre na mesma hora. Apesar da brevidade de minha memória, consigo me lembrar de que esse sonho é o mesmo de ontem e o de anteontem e talvez seja o mesmo da semana passada. Meu cérebro não quer apagá-lo. Faz tempo que não ouço ninguém dizer que teve um sonho. Melhor manter isso em segredo. Os Crazy Daisy estão por toda parte. Alguns acham que é uma lenda, que não existe essa tal organização dos Crazy Daisy, mas a maioria das pessoas nunca se lembra do dia anterior, outros retêm a memória apenas por uma ou duas horas. Esses são os mais fragilizados, que costumam ser os mais felizes também. Toda vez que o nome Crazy Daisy vem à tona em uma das reuniões, dizem não acreditar, que isso é impossível, e remetem às antigas lendas virtuais espalhadas na COM. Há duas dessas lendas recorrentes em nossas reuniões e gostamos de contá-las sentados ao redor de algumas lanternas acesas. Isso nos faz sentir medo. Até que eu esteja realmente convencido de que os Crazy Daisy não existem, prefiro manter o benefício da dúvida a meu favor, afinal, questionar exercita meu cérebro, minhas breves memórias amolecidas.


#115



Alexander Peverett



Alexander Peverett


#120


Supernational - Dave Kinsey

Blue é uma garota fascinante. Não saberia dizer o motivo, mas ela me encanta. Sempre a vejo montada numa bicicleta motorizada de cor laranja. Eu posso reconhecê-la por causa do unicórnio que ela tem tatuado no ombro. Finjo que não a conheço. Uma vez na semana eu a encontro no Centro de Nose Art, uma região suja, bastante frequentada por jovens. Puxo papo e pago um drinque para ela. Uma semana é o período máximo que consigo mantê-la na memória. Blue usa perucas de cores diferentes e muda constantemente o perfume. Isso me confunde. Confio nos meus sentidos, mas com ela não funciona muito bem. Um homem alto conversa com Blue. Ele me vê. Tenho a impressão de já tê-lo visto antes. É possível, nunca se sabe. Quando tenho essa impressão, acho melhor me afastar. Pode ser um Crazy Daisy. Meus instintos são confiáveis com a maioria das pessoas. Olho para a Blue, mas ela não me vê. Suspendo o capuz do casaco e sigo em frente. O homem me olha mais uma vez. Caminho mais rápido, imagino se conheço algum lugar confiável naquela região. Um bar está aberto. Empurro a porta e entro. Começa a chover lá fora. Sento nos fundos, num lugar pouco iluminado. O homem que conversava com Blue passa pela porta, caminha pelo bar cheio de pessoas. Encosto-me na parede e permaneço coberto pela escuridão. Ele está me procurando.


Modern Media - Dave Kinsey


Metropolis - Dave Kinsey


Saint Remy - Dave Kinsey


Desde que nós fomos desconectados tudo virou um caos. Nem sempre percebemos que vivemos em um, até porque o caos é tudo o que temos agora e quase ninguém se lembra do que éramos ou tínhamos. Não há parâmetros. Os Crazy Daisy podem ser a resposta. Um dia, numa reunião, um sujeito disse que algumas pessoas podiam se lembrar de tudo, que sabiam de tudo. Pequenos deuses, os verdadeiros sábios e profetas que andam na Terra camuflados em nosso meio. Registrei isso no meu gravador. Era um homem bem convincente. Fico fascinado com a ideia, mas ao mesmo tempo apavorado ao pensar que poderia me lembrar de tudo. Esquecer tem suas vantagens. A consciência está sempre tão limpa quanto a de um recém-nascido, e é exatamente isso que somos a cada hora, recém-nascidos de consciência.Viver com poucas lembranças ou nenhuma faz minha consciência não me acusar. Estou entre a necessidade de lembrar e a vontade de permanecer como a maioria das pessoas, com a mente fresca, renovada a cada hora. É o primeiro dia de primavera. Caminho pela praia, com areia entre os dedos dos pés, e o vento morno sacode meus cabelos. As primeiras gaivotas imigrantes sobrevoam minha cabeça e fazem sombra no chão. Conforme caminho, percebo que minhas pegadas somem. Desaparecem. Elas estão na minha frente, como se eu já tivesse percorrido todo o caminho. Tento alcançá-las, mas se apagam quando me aproximo. Atrás de mim, um rastro plano, imóvel. Um caranguejo sai de dentro do chão e muitos outros atrás dele. Seguem para o mar, que é silencioso na primavera e turbulento no inverno. Há um homem sentado à distância. Ele fala alguma coisa, mas não escuto. Caminho em direção a ele e parece que, por mais que me esforce, não saio do lugar. Caminho, mas não consigo me aproximar do homem. Acordo. Estou cansado e com muita sede. Hoje o céu de São Paulo está violeta. O imenso arco sobre nossa cabeça, formado devido à escassez de vegetação, indica que teremos um dia abafado. Nos fins de tarde, chuva ácida. Caminho até o supermercado que nada mais é que um balcão com algumas telas embutidas. Diante de uma dessas telas, seleciono os produtos que quero, insiro meu cartão de compras e na saída apanho minhas sacolas. Caminho para casa, que fica a apenas dois quarteirões do supermercado. Percebo que um homem me segue. Pode ser impressão, vivo paranoico, mas acho que ele quer falar comigo. Finjo que não percebo, pego uma rua mais movimentada e paro num posto de alimentação. Insiro meu cartão, seleciono um sanduíche e um chá de ervas gelado e sento numa mesa, num canto da praça de alimentação, ornamentada com flores de acrílico. O homem se aproxima de mim. Ao menos me sinto seguro com tanta gente ao redor. Ele puxa uma cadeira e senta na minha frente. Olha para mim e sorri. É o mesmo homem do meu sonho. Como meu sanduíche e espero que o homem comece a falar. Ele não fala, olha para mim e consigo entender tudo o que pensa. Sinto pavor, pois ele não deveria ser capaz de fazer isso… ninguém mais é. Ele quer que eu o acompanhe a um lugar. Eu digo que não vou. Ele insiste. Sinto confiança nele e vontade de saber o que vai me contar.



Alexander Peverett


Populist - Dave Kinsey

Estamos longe do centro de São Paulo, numa região que não conheço. Subimos uma rua a pé, evitando o elevador que nos transportaria até o topo em poucos segundos. O homem diz ser mais seguro ir a pé, e completa que gosta de observar a vista com calma. Uma casa pequena e velha é o que encontramos no topo da rua. Um leitor de íris ao lado da porta identifica o homem. Entramos. É uma casa simples e comum. Ele manda eu deixar minhas sacolas em cima do sofá. Caminhamos até a cozinha e nos sentamos à mesa. Ele prepara um café e tira de uma coisa que parece um forno bastante rústico um bolo que tem um perfume inigualável. Tudo ali é pouco convencional para mim. Ele diz que é uma casa dos idos de 1990, que eu jamais vi nada parecido. Concordo. Pela janela, do lado de fora, avisto um pôr do sol fascinante e a imensa vegetação. Ele me serve café numa caneca e uma fatia do bolo, que é de laranja. Nunca vi uma laranja, somente no simulador. Temos algo parecido, mas o original é muito melhor. O homem se levanta e diz que tudo à nossa volta são memórias recortadas de nossos antepassados, guardadas secretamente pelos Crazy Daisy. Aqui dentro, ele diz, estamos em 1990. E podemos voltar a 1990. Estou tão fascinado com o sabor do café, do bolo de laranja, e com a visão através da janela, que me esqueço de perguntar o motivo de ele ter me levado até ali. A casa se move, gira em sentido horário. Eu me assusto e me seguro na cadeira. Quando para, é noite lá fora. O homem toca numa parede que se abre e entramos por ela. Descemos por uma escada branca e estreita até a sala dos quadros. Um grupo de pessoas está reunido. Várias obras de arte estão projetadas nas paredes. Há muitas salas, muitas décadas passadas em cada uma delas. Coisas que jamais vi. Eu me lembro, minha consciência vem à tona. Vejo meu reflexo no espelho que recobre uma parede e me reconheço. Agora sei onde estou e quem sou eu.


#129



Brett Amory



Brett Amory


Brett Amory


— Irmão. Aquela palavra desconhecida fez piscar uma luz azul diante dos meus olhos. Não fazia parte do vocabulário dos encontros diante da figueira. Concentrei-me para vasculhar os bancos de dados relacionados. Botânica: Ficus organensis, fotossíntese, galhos, tronco. Arquitetura: degrau, muro, obelisco, ruínas. — Irmão. Eu não conseguia buscar aquele termo e a origem do sinal ao mesmo tempo. Até porque já começavam a chegar as primeiras mensagens do evento do qual eu fingia participar. “Esta figueira, oficialmente chamada de Árvore Número Seis, é uma das poucas que restam no mundo, havendo apenas 25 dessas sobreviventes em nossa Conferência do Hemisfério Sul”, transmitiu alguém. Para um que-se-lembra, como eu, os que-se-esquecem eram fonte de permanente espanto. Sempre voltavam ao largo da Memória para esquecer as mesmas coisas — uma pena que apenas eu captasse a ironia de o largo ser “da Memória”. Em repetidas ocasiões, os mesmos rostos se surpreendiam ao saber que, “assim como as outras 69 sobreviventes, a Árvore Número Seis possui vigilância total e ininterrupta”. Era uma reciclagem permanente de impressões e comentários, melodias infinitas com variações mínimas, a paciência encarnada. Como os que-se-esquecem formavam uma maioria nada silenciosa, todo que-se-lembra aprendia desde cedo a também ver tudo como se fosse a primeira vez. — Irmão. Seria outro que-se-lembra tentando fazer contato? Ainda era difícil saber. Depois de várias advertências sobre a segurança da Árvore Número Seis — redundantes, dada a quantidade de alertas visuais, sonoros e neurais —, senti a transmissão se intensificar quando alguém começou a contar a história da corrente. Essa até que é interessante: dentro da figueira havia o pedaço de uma corrente, provavelmente instalada para conter seu crescimento. Mas a árvore cresceu tanto que absorveu seus grilhões, que entravam por um lado do tronco e saíam pelo outro. O jeito foi tirar tudo, deixando apenas o metal já inserido no vegetal. Deve haver uma lição profunda aí, mas meu reflexo era sempre compartilhar a mesma piada. “Sem corrente, quando ninguém estiver olhando, a figueira pode fugir!” Os que-se-esquecem enviavam risos. — Irmão. O pulso azul foi ficando mais forte. Por sorte, os comentários já estavam em sua segunda encarnação. Bastava repetir o que já havia sido enviado para fingir participar e na verdade me concentrar na origem do sinal. — Irmão. É uma figueira, uma das setenta árvores restantes no mundo, sempre muito vigiada, e tem uma corrente dentro do tronco.

— Irmão. Uma figueira, setenta árvores no mundo, muito vigiada, corrente no tronco.

— Irmão. Figueira, setenta árvores, vigiada, corrente. O emissor era sujeito com olhos azuis que não piscavam. A palavra que ele me mandava era muito antiga, com significados muito abrangentes.

— O que você quer dizer? Os olhos azuis não piscavam.



Brett Amory


Brett Amory


— Irmão. As coisas começaram a se tornar mais claras quando realizamos um encontro clandestino dos que-se-lembram para conversar e falar de artistas. Nunca soubemos o quanto éramos procurados ou se de fato éramos perigosos, mas tomávamos todos os cuidados. Saiba — se é que um dia vai existir um “você” — que essas reuniões foram extremamente importantes, uma resistência ao padrão imposto pelos que-se-esquecem, de transmissão de dados e entretenimento instantâneo. Nossas vozes eram destreinadas, vacilantes, como imagino que eram as dos antigos surdos. E falar de arte nos elevava. A Árvore Número Seis e seus arredores, um lugar que frequentávamos tentando passar despercebidos pelos que-se-esquecem, costumava ser um bom ponto de partida. Alguém diz que as muretas e as escadas do largo da Memória lembram Jean Charrière. Aquele das pombas? Sim, o das pombas, alguém diz, mas também das paredes. E alguém nos conta das lendárias paredes de Jean Charrière, construídas para se destruírem. Expostas em caixas transparentes, pareciam paredes normais, formadas por cubos empilhados um em cima do outro, um ao lado do outro. Mas eram paredes vivas, formadas por uma mistura de concreto com fungos e bactérias — que se alimentavam do concreto. Tijolos de bolor, alicerces esponjosos, blocos se desmanchando de tão podres. Agora, nada mais apodrece. Agora, nada se desmancha. Agora ninguém mais vê as muretas e os degraus do largo da Memória nem lembra de Jean Charrière. Mas nós lembramos. E outro alguém compara as paredes de Jean Charrière às favelas de Dionísio González. Imagens hiper-realistas de blocos de barracos rearranjados como contêineres, reorganizados como caixas de sapato, blocos de barracos rebatizados como sucessores, ou melhor, sequências dos originais. Alguém diz que González criava paisagens de uma pobreza do — imagino e rio — futuro. Outro alguém, entusiasmado com a história do tronco que engoliu a corrente, menciona uma instalação de Mark Jenkins. Em um terreno livre à beira de uma estrada, uma trepadeira cobriu tudo que Jenkins colocou à sua volta: sucata, móveis velhos, paus, pedregulhos. Manequins. Tudo soterrado pela lava de um vulcão verde. Um Vesúvio de erva daninha enterrando uma Pompeia de lixo. rumo.

A discussão enveredava para uma espiral de obras e nomes, quando a conversa mudou de — O que quer dizer a palavra irmão?

Ninguém sabia. Pelo menos, ninguém respondeu nada. A reunião estava encerrada. “Você se lembra daquele dia em que perguntou sobre a palavra irmão?” Nós, os que-se-lembram, gostávamos de começar as conversas assim: você se lembra? “Sim, me lembro.” O outro contou que havia pesquisado o termo. Era arcaico, com possíveis acepções políticas e até religiosas, relacionado a grandes amizades. E havia um significado principal: irmão, o filho do mesmo pai e da mesma mãe que você. Eu, no caso. Apesar disso tudo, havia algum sentido que continuava me escapando. Algo que eu sentia quando aquele cara de olhos azuis me chamava de irmão.



Brett Amory


#142


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Eu sempre achei que seria o perseguido por ter memória e participar daqueles encontros clandestinos. Mas, apesar de tudo, eles nunca vieram até mim. Foram sim atrás do sujeito de olhos azuis. Estávamos, como sempre, em volta da Árvore Número Seis. É uma figueira, uma das setenta árvores restantes no mundo, sempre muito vigiada, e tem uma corrente dentro do tronco. — Irmão. Cada vez que ele enviava, o pulso azul parecia mais forte. Chegou um momento em que me fez estremecer, com uma sensação ruim. Acho que é o que os antigos chamavam de pressentimento — dar de cara com uma informação recém-nascida. Menos de cinco minutos depois, um loop com sobretudos e capacetes amarelos com uma antena de cada lado chegou ao largo da Memória. Uma figueira, setenta árvores no mundo, muito vigiada, corrente no tronco. Dois dos homens do loop seguraram aquele que me chamava de irmão, cada um por um braço. Ele me olhou assustado. — Irmão. A transmissão de comentários foi interrompida por um instante, enquanto a multidão dos que-se-esquecem observava ele ser levado e colocado dentro de uma caixa preta com rodas. Mas logo todos se esqueceram do que haviam visto e retomaram a conversa de sempre. Figueira, setenta árvores, vigiada, corrente.



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Os que-se-lembram ficaram alvoroçados com a notícia. Quase felizes ao ver que era real a possibilidade de algum tipo de repressão. Vários pensaram em se tornar mais extremistas para chamar a atenção da COM, como o sujeito que não piscava chamado. Alguns falaram em incendiar a Árvore Número Seis. Ou qualquer outra árvore. O importante era saber que a COM estava de olho. Não conseguiam entender que ele não tinha sido preso por ser radical ou protestar contra qualquer coisa. Não era por ser dos que-se-esquecem, nem dos que-se-lembram. Ele apenas era diferente. Diferente de um jeito que nunca consegui entender ou explicar. Fui ao prédio central de controle da COM, interpretando um dos que-se-esquecem viciado em arquitetura. Enquanto olhava o edifício cor-de-rosa, emitia informações sobre o arquiteto, William Fillinger, a técnica construtiva de tijolos de alvenaria com concreto, a ousadia de fazer um arranha-céu de trinta andares nos anos 1930, o estilo eclético, a mansão na cobertura. Fiquei dias perto do edifício tentando captar aquele sinal azul. Até que ele piscou diante de meus olhos, muito fraco. — Irmão. Olhei para cima, mas não consegui ver ninguém nas janelas. Enviei perguntas. Onde você está? Está bem? Mas ele não parecia capaz de recebê-las ou de respondê-las. Só mais uma vez, me alcançou.

— Irmão.


#147



Brett Amory


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Sinceramente, não sei se o vírus “Kinsey” que matou multidões e obrigou a COM a desligar a si mesma foi mais difícil para os que-se-lembram ou para os que-se-esquecem. Nós nos sentimos perdidos, eles se sentem abandonados. Vários sentem uma mistura das duas coisas, e todos são obrigados a ser livres. Os que-se-lembram talvez se lembrem. Ou que-se-esquecem talvez não se lembrem. A verdade é que 100 milhões de pessoas mantinham controle quase ABSOLUTo sob as mesmas 100 milhões de pessoas sem e com memória. A vida na cidade grande se tornou inviável. Por isso, partimos. Cruzamos as estradas que todos evitavam, onde a COM não funcionava direito. Agora, tanto faz. Ninguém faz ideia de quantos anos se vive sem a supervisão permanente de cada célula, mas acredito que a comida em nossa mochila seja suficiente. Mesmo sem o fluxo de dados de mente a mente, ainda se fala muito pouco. Quando viajantes se cruzam, é comum que contraiam as têmporas para transmitir uma saudação — quando se dão conta de que isso não é mais possível, o outro já vai longe. Parece que faz anos que tive o pulso azul entre meus olhos pela última vez. Nunca mais nos encontramos. Até ontem. Antes de deixar a grande cidade, decidi ir até a figueira do largo da Memória. Ela ainda estava lá. Ainda uma figueira com quinze metros de altura e trinta de largura, um pedaço de corrente por dentro do seu tronco — mas quem garante que ainda restam setenta árvores no mundo? Não havia vigilância, e me aproximei dela como nunca foi possível, para tocar suas folhas. A certa altura, reconheci rosto dele, apesar das cicatrizes. Seus olhos azuis continuavam sem piscar. Estava com um terno onde a sujeira aparecia mais que a cor, um terno grande demais para a sua magreza, sapatos abertos na frente. O cabelo se fora. Sem o módulo da COM, não conseguia emitir nem sua única palavra. Fui eu que, colocando a mão em seu ombro, pela primeira vez a falei.

— Irmão. Ele me olhou e seguimos, em silêncio, para longe dali.



Yoshi Sodeoka



Yoshi Sodeoka


#156


Yoshi Sodeoka

Nunca saquei direito o fato de a COM — tão sabichona e zelosa do bem estar de seu usuário, tão samaritana — não ter se preocupado com nossa incompetência secular pra medicina. Afinal, ninguém mais estava encarregado de curar o semelhante fazia gerações, desde que tratamentos, cirurgias etc passaram a ser problema das máquinas. Pior que isso: sendo obrigado a suar menos de dez minutos por dia, a gente esqueceu como é chato trabalhar. Olha só as minhas mãos. Não têm um calo. Traquitanas médicas continuam aí, mas quem é que sabe usá-las depois do Grande Desligamento? Eu é que não sei. E dizem que a COM se autodesligou pra salvar a humanidade, puá! Por sorte a natureza continua sábia. Bastou a COM pifar e a natureza entrou em ação na sua forma mais conhecida: mães. É, mães. Eu sei que a maioria desse povo aí nasceu de proveta, porém ainda existem alguns poucos sortudos tipo eu que nasceram de mães de carne, osso e placenta. Na manhã seguinte ao Grande Desligamento a velha já tava esmurrando lá na porta do apê. — Não vai ficar de vagabundagem, não — ela disse, com a mão direita na cintura e o gancho apontado pra minha testa. — Pode se mexer aí que arranjei um emprego pra você, bora!



Black Hole Sun - Nicola Verlato


Yoshi Sodeoka


E aqui estou eu de balde e rodo na mão nesse corredor imundo inteirinho só pra mim. Lá fora os passarinhos piam nos galhos artificiais das árvores de poliuretano, a grama sintética do jardim cresce milimetricamente a cada pisão que leva, estimulada pelas palmilhas das chinelas dos loucos que sapateiam por cima dela. Mas cadê os médicos? Não tem, aqui dentro só tem louco, são os Desligados, os caras que não suportaram o apagão súbito da COM e acabaram trancafiados neste velho prédio da Paulista que cheira a chulé do século retrasado. Parece que este lugar era uma maternidade faz uns duzentos anos, no tempo em que as maternidades faziam algum sentido, depois virou hotel cinco estrelas e assim continuou, mas isso foi quando hotéis faziam sentido e até a classificação “cinco estrelas” significava alguma coisa, então faz tempo pra dedéu. Daí o diacho da COM foi atacada pelo vírus “Kinsey” e alguém — certamente uma mãe — teve a ideia de ocupar o prédio com esses desligados. Mas peraí: — Ei, seu bobão, por que não vai fazer porqueira lá na casa da mamãe? Não aguento mais. Aqui tem todo tipo de louco, os que ficam pintando paredes de marrom e os que se acham uns verdadeiros Vince Contarino e também os que se acham Yoshi Sodeoka mesmo sem ter olhos puxados, e aí nem te conto, pois além de retardado tem de ser cego, né, mas a verdade é que nenhum desses desligados aí é artista e a única grande obra que eles fazem são os montinhos largados pelos cantos do hospício Umberto Primo. Quando minha mãe me arranjou esse emprego, ela falou: — Se liga nos malucos, bota um olhão bem grande nos pirados, filhão, pois sei de fonte seguríssima que lá dentro do Umberto Primo tem um louco que é importante, um figurão aí que tá sendo procurado pela máfia dos Crazy Daisy. — E desde quando os Crazy Daisy existem, mãe, tá pirando? — Não tô pirando porra nenhuma, moleque, ou cê acha que te botei lá dentro do hospício pra ficar queimando cigarrinho de artista e limpando rastro de retardado? Eu sei o que tô falando, meu filho, e lá dentro tem um louco que vale umas paradas aí e eu quero chegar nesse maluco antes dos Crazy Daisy, falou? Então fica esperto.

— Mas o que os Crazy Daisy querem com ele? — Parece que o maluco sabe onde tá escondida a Parada ABSOLUT. A mãe é assim, quem sou eu pra contrariar. E tinha perdido o juízo de vez.

E foi assim que virei vigia de maluco e coletor de aborrecimento. Pra começar, nunca pensei que os Crazy Daisy existissem pra valer, pois sempre achei que fosse boato da época da COM, afinal um loop meio fantasma de gente obcecada por geringonça velha solta por aí e aprontando de tudo pra fazer o mundo voltar a ser o que era antes do domínio completo da COM é uma ideia meio insana até mesmo pra mim, que trampo num hospício. Pra piorar, a mãe veio com aquele papo de Parada ABSOLUT, outra lenda das antigas que falava a respeito de um negócio que ninguém sabia exatamente como era que ao ser usado transformava o usuário: a Parada ABSOLUT devolvia a memória a quem não lembrava, fazia falar quem não falava, pensar quem não pensava, sonhar quem não sonhava, transformava gente burra em inteligente, era a primeira e única maravilha do Universo. Só que ninguém fazia ideia de sua forma ou aparência. Seria uma pílula, um implante, um chapéu com antenas ou uma nuvem com aparência de girafa? Ninguém sabia, eu muito menos.



No place like home - Nicola Verlato


Yoshi Sodeoka

De todo modo resolvi cumprir minha missão, e passei a vigiar bem de pertinho o que a malucada fazia; outra variação de pirado que existe aqui é o Desligado que afirma ter becapeado a COM inteira antes de ela se autodesligar. Quando testemunhei o primeiro desses espécimes discursando em cima da calha da oficina de recreação, considerei que o tipo procurado pela mãe e pelos Crazy Daisy fosse justamente aquele, um doido que discursa até em escada de um só degrau e acha que tapete é palanque. — É o seguinte, bichô, eu becapeei a COM inteira, manja, e foi difícil pra dedéu fazer isso, saca, porque a conexão aqui nessa merda dessa nação de viciado em bossa nova é uma lerdeza só, morô, daí eu tive que morrer numa grana federal contratando uns sites tipo mirror lá pras bandas de Amsterdã, já que naquelas bandas do hemisfério norte tudo é mais evoluído, né não, e foi só então que eu consegui baixar tudo pra cá e tal. Mas o que é que eu tava falando mesmo, hein bichô? Então o gordo carequinha de roupão e tico murcho de fora ficou olhando pra mim lá de cima, as mãos nos bolsos, à espera de uma resposta ou de uma queda livre súbita. Não deve ser nada mole ter esse lance de memória curta, deus me livre, sorte que eu e a mãe não dançamos com isso, aliás é uma baita felicidade que a gente, duas pessoas de uma mesma família — tão raro isso —, não sofra com a amnésia retrógrada. A real é que eu e a mãe temos é um senhor de um rabo, acho que a gente nasceu virado pra Gliese 581c, só pode.


#165



Mothers - Nicola Verlato


Yoshi Sodeoka


Porém uma noite que eu tava de plantão e recolhia uns bitelos ressequidos no corredor dos dormitórios com minha pá, ouvi alguém me chamando.

— Psiu, ô, psiu.

Era o carequinha de roupão. Estava deitado na ala dos Recém-Nascidos, o jeito que a gente apelidou o setor dos malucos crônicos sem família, gente que não tem a menor chance de receber alta (não que os outros doentes tenham, afinal não existem mais médicos, só que os Recém-Nascidos estavam numa muito pior). Fui me aproximando do gorduchinho e percebi que ele estava todo recatado, com a faixa do roupão amarrada na cintura e até o tico havia se recolhido a sua toca. Quando cheguei mais perto, pude observar melhor seus traços, apesar de a penumbra não colaborar muito, e notei que ele tinha uma expressão quase infantil. Seus olhos eram claros e parecia pronto a cair no choro. — Ô, isso, chega mais — ele disse. — Sabe que aqui antes era um hotel? — Ouvi falar. — Verdade, era mesmo. Só que era um hotel quatro estrelas, ao contrário do que o pessoal fala. Manja qual era o slogan do hotel quatro estrelas que existia aqui, hein, manja? — Pô, como é que eu posso saber? Isso aí faz um tempão. — Ué, ouvi dizer que você é dos que não têm problema de memória… — Por isso eu trabalho aqui, né, só gente sem esse probleminha na cuca é que pode limpar aborrecimento. Afinal, vocês fazem e não lembram onde deixaram. — Ô, não fala assim. Mas, hein, você manja qual era o slogan do hotel quatro estrelas que tinha aqui? Manja ou não manja? — Não manjo. — “A quinta estrela é você”, haha! O carequinha falou isso e deu uma gargalhada pavorosa. Depois entabulamos papo, e fiquei espantado com a inteligência meio lesadona do maluco. Ainda que esquecesse o que falava de cinco em cinco minutos, ele resumidamente disse que 1) tinha becapeado a COM inteirinha num infinitésimo chip de titânio instalado em sua nuca, bem numa vértebra cervical; 2) ele havia feito isso porque sacava que os Crazy Daisy pretendiam contaminar a COM; 3) infelizmente ele não sabia mais como acessar a informação becapeada, pois não lembrava direito onde estava a senha encriptada que permitia fazer isso.



Yoshi Sodeoka


Na manhã seguinte liguei pra mãe: — Acho que encontrei o piradão que você tá procurando — e ressaltei. — O cara é fera, mãe, doidinho mas inteligente que só ele, afe. Mas acho que não tá por dentro da tal Parada ABSOLUT. Duas horas depois e ela já se pendurava na campainha do Umberto Primo com seu gancho encurvado. Eu a levei até o carequinha, mas não o encontramos num momento lá muito inspirado: ele soltava um premiadão e tanto em um dos penicos que eu distribuí pelo corredor na esperança de que a malucada parasse de fazer no chão. Considerei até um bom auspício o fato de ele usar o penico, e a mãe conversou com ele ali mesmo, de cócoras, tapando o nariz.

— Ziguintchi, onbi dá a zenha? Bor gue non lembra onbi ezconbeu? — Que é que foi? — ele olhou pra mim. — Ô, quem é esta aqui?

Mas a mãe é brabíssima, e acabou arrancando a resposta do gorducho, que terminou caído no chão com o penico enfiado na cabeça e uma franja marrom escorrendo pela testa. Em seguida a mãe cochichou no meu ouvido que eu vigiasse o maluco e caiu fora sem nem olhar pra trás. — Ô, psiu — o gorducho disse assim que ela saiu mancando porta afora. — Tenho uma coisinha meio chatinha pra te dizer. — Que é? — Essa dona aí não é tua mãe, não, garoto. — Tá doido? Bem, doido eu sei que cê tá, acho que agora sou eu que enlouqueci. Por que cê tá me dizendo isso? — Porque ela é uma andróide. É sim. Meio caidona, deve ter sido fabricada quando ainda faziam andróides femininos com pelos faciais, mas tenho certeza, bichô, essa aí é um PT-905/12 do século passado. — PT-905/12? — Geração de andróides femininos fabricada em Portugal em 2012. — Portugal? — Antigo nome da nação que ficou famosa pelo azeite e o bacalhau. E ela não é tua mãe.

Acabou tudo pra mim.

— Bichô, o pior não é cê ter vindo a este mundo a bordo de uma proveta — o carequinha disse, abanando o roupão pra dissipar emissões gasosas. — Ruim pacas, vai por mim, é que aquela gorda lá trabalha pros Crazy Daisy.


Yoshi Sodeoka



Mothers II - Nicola Verlato



Yoshi Sodeoka


Best for You - Nicola Verlato


Daí em diante tudo desandou. O carequinha contou que tinha enganado a gorda androide e me convenceu a ajudá-lo a fugir dali. Montamos um plano, aguardamos a hora em que o diretor costumava pedir sua pizza e fugimos. Enquanto eu o empurrava por cima do muro dos fundos do hospício, pude ver toda sua humanidade sob um ângulo nunca dantes sonhado, porém depois de perder a mãe nada mais fazia sentido pra mim, então empurrei aquele traseiro peludo pra cima com toda a força que um órfão recém-constituído podia ter. Acabei usando tanta força que o maluco despencou na calçada do outro lado. Então ouvi um berro. — Eureca, bichô, lembrei! Nem deu tempo pra ele contar o que tinha lembrado e vimos a mãe surgir na esquina. Estava desfigurada, não lembrava mais aquela mulher que me amamentou — pra falar a verdade não lembro dessa parte — e ternamente cuidou de mim durante a vida inteira. A gorda robô brandia seu gancho no alto e rangia os dentes em nossa direção, fazendo uma zoeira pavorosa de máquina de lavar defeituosa. Atrás dela, um bando de caras com aspecto pouco amistoso descia das escadas: eram os Crazy Daisy. Senti o carequinha apertar com força meu cotovelo e demos no pé. Não foi difícil acompanhá-lo na fuga, pois seu roupão inflado vibrava nas ladeiras escuras, orientando minha visão. Corremos como dois malucos fugidos do hospício, o que na realidade éramos, até darmos no largo da Memória. Hoje em dia o nome desse lugar é uma piada de mau gosto. Quando viu a redoma da Árvore Número Seis toda iluminada, o maluco deu um tapa na própria testa e prosseguiu na correria, arrancando um pedaço de poste retorcido do chão. Enquanto arrebentava o vidro da redoma com o ferro, ele explicou o que havia lembrado. — A senha taí dentro da redoma — ele falou aos brados, conseguindo soar mais alto que o alarme disparado. — É uma máscara que enterrei num cofrinho bem debaixo da raiz dessa figueira, pois sempre curti esse lugar. Olha que lindo. Ih, olha os guardas. — Máscara? Antes mesmo de os guardas-robôs apontarem suas armas pra nós, o gorducho deu um salto extremamente ágil e invadiu a redoma, acocorando-se no chão úmido e enfiando os dedos das mãos no solo pegajoso e frio. — Isso aqui é terra, bichô, terra de verdade, já tinha visto antes? Saca só, transas terra ou não transas? Cavoucando com muita rapidez aquela substância esquisita cheirando a esterco velho, o carequinha desencavou uma lata de biscoito enferrujada que limpou com a aba do roupão. Àquela altura eu já questionava minha própria sanidade por seguir um louco. Bem na hora em que ele arrancou a tampa da lata, nós dois fomos atingidos pelos raios paralisantes disparados por Jackson e seus guardas-robôs e congelamos. Com o olho direito bem arregalado e duro eu pude acompanhar a lata cair no chão, mas dentro dela não havia nada a não ser um colar com pingente em forma de coração partido todo sujo de lama e a máscara em cuja testa era possível ler a inscrição “ABSOLUT”.

A Parada ABSOLUT era a senha para o becape da COM.


#180


MOMO



MOMO



MOMO




MOMO para ABSOLUT VODKA


MOMO



MOMO


Textos

Artistas

#002

#010

David Quiles Guilló

(Elche, 1973)

Empreendedor renacentista, realiza conceitos e projetos nos quais outros artistas mostram seu talento. No comando de ABSOLUT 2140, uma novela colaborativa, criou uma nova forma de contar histórias, que ele nomeia de “Stereo-Storytelling”, em que a história que está sendo contada com palavras anda em paralelo com a história que se percebe com as imagens.

#014

Santiago Nazarian (São Paulo, 1977) Escritor e tradutor, publicou Olívio (2003, Prêmio Conrado Wessel de Literatura), entre outros livros. Seus últimos romances são Pornofantasma (2011) e Garotos malditos (2012).

#066

Simone Campos (Rio de Janeiro, 1983) Escritora, estreou aos 17 anos com a novela No shopping (2000). Publicou os romances A feia noite (2006) e Owned – um novo jogador (2011), e o volume de contos Amostragem complexa (2009, Petrobras Cultural).

#102

Ana Paula Maia

(Brooklyn, 1968)

Mora em Nova York. Depois de terminar seus estudos na Parsons School of Design e no San Francisco Art Institute, expôs suas obras nos Estados Unidos e em outros países individualmente e em grupo. É beneficiária da New York Foundation for the Arts Fellowship em pintura e da Mac Dowell Colony Residency. Em 2013, pretende completar uma encomenda para a Metropolitan Transit Authority, em Nova York.

#015 Zimoun

(Bern, 1977)

Artista autodidata, mora em Berlim. Seu trabalho tem sido apresentado individualmente e em grupo, na Europa, América do Norte, Ásia, África e América do Sul. Recebeu diversos prêmios, fez várias residências e é sempre convidado para dar palestras ao redor do mundo.

#024

Dennis Feddersen (Braunschweig, 1979) Suas obras realmente ocupam espaço. A flexibilidade é um dos critérios mais importantes para a escolha dos diferentes tipos de materiais que ele experimenta durante o processo criativo. Suas esculturas flexíveis reagem à arquitetura ao redor e se adaptam a ela. São esculturas não fechadas, nem limitadas a sua forma, e sua identidade formal é definida por sua mutabilidade inerente.

(Nova Iguaçu, 1977)

Escritora, estreou com o romance Os habitantes das falhas subterrâneas (2003). Publicou, entre outros, A guerra dos bastardos (2007), Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) e Carvão animal (2011).

#135

Emiliano Urbim

Tricia Keightley

(Porto Alegre, 1978)

Formado em jornalismo na UFRGS, está desde 2002 em São Paulo. Além de escrever para jornais e revistas, faz roteiros — seu primeiro longa, As aventuras do avião vermelho, estreia em 2013.

#060

Yago Hortal

(Barcelona, 1983)

Mora e trabalha em Berlim, Alemanha. Estudou arte na Universidade de Barcelona e recebeu uma bolsa de estudos na Universidade de Sevilha. Em 2007, ganhou o “Premi de Pintura Jove” da Sala Parés Gallery, e participou de várias mostras, prêmios e feiras de arte na Espanha e na América do Norte. Suas obras estão em diversas coleções públicas e privadas em todo o mundo.

#068

Pim Leenen (Uden, 1985)

#156

Joca Reiners Terron

(Cuiabá, 1968)

Escritor, publicou os romances Não há nada lá (2001, reeditado em 2011), Hotel Hell (2003), Do fundo do poço se vê a lua (Prêmio Machado de Assis-FBN, 2010), Guia de ruas sem saída (2012), entre outros livros.

Fotógrafo holandês. Seu trabalho, amplamente apresentado na Holanda e na Bélgica, é muitas vezes um estudo da realidade fotográfica e brinca com o conceito de tempo. Está constantemente à procura de materiais que podem dizer mais do que pretendem. Ao tirar materiais de seu contexto original e colocá-los em um novo contexto, transformações de função e significado são criadas.


Artistas

Créditos

#100

Alexander Peverett

(Wigam, 1976)

Artista multidisciplinar ingles, reside no Japão e no Reino Unido. Seu trabalho explora os campos da música eletrônica, videoarte, instalação multimídia, arte generativa e computação gráfica.

Graziela Calfat (São Paulo, 1969) Diretora executiva e de comunicação. Joca Reiners Terron

#103

Coordenação editorial.

Dave Kinsey

(Cuiabá, 1968)

(Pittsburgh, 1971)

Designer e artista plástico. Seu trabalho tenta capturar a essência universal da condição humana, principalmente através de uma representação simbólica da vida contemporânea. Utilizando uma série de meios, constrói ambientes multicamadas e texturizados que ecoam as complexidades da nossa existência.

Ros Dolan Studio

(Barcelona, 2001)

Fernanda Alvares

(São Bernardo do Campo,1971)

Diagramação.

Correção de textos.

Guilherme Brandão

#130

Brett Amory

David Quiles Guilló (Elche, 1973) Ideia original, edição “stereo-storytelling” e curadoria.

Distribuição e logística.

(São Paulo, 1981)

(Chesapeake, 1975)

Descendente de uma longa linhagem de artistas visuais e músicos, viveu em São Francisco por quinze anos antes de mudar-se para Oakland em 2009, onde mora atualmente. Seu trabalho foi exibido em Los Angeles, San Francisco, Londres, Nova York e São José.

Pancrom

(São Paulo, 1949) Impresão e finalização.

#152

Yoshi Sodeoka (Yokohama, 1978) Artista multidisciplinar e músico japonês, vive e trabalha em Nova York há mais de duas décadas. Sua videoarte psicodélica, nutrida pelo seu passado como pintor, músico punk e eletrônico, é um confronto distópico de ruído e beleza. Seus projetos têm sido extensamente apresentados ao redor do mundo, inclusive em São Paulo, em 2011, no Nova Festival de Cultura Contemporânea.

#158

Nicola Verlato

Uma publicação

Um projeto (Verona, 1965)

Artista visual ítalo-americano, mora em Los Angeles. Começou a pintar precocemente com Fra’ Terenzio, um pintor do mosteiro de monges franciscanos de Lonigo. Expõe suas pinturas, desenhos e esculturas no mundo todo. 2013 ©SINTONISON SL

#184

Momo (San Francisco, 1974) Trabalha ao ar livre com sistemas e ferramentas caseiras. Atualmente está desenvolvendo um conjunto de ferramentas para esboçar, desenhar e organizar murais com técnicas adaptadas de alvenaria. Viajou a maior parte da vida, morou em Nova York por seis anos e, hoje, mantém um estúdio em New Orleans.

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MOMO



Brett Amory Simone Campos Dennis Feddersen Yago Hortal Tricia Keightley Dave Kinsey Pim Leenen Ana Paula Maia

MOMO Santiago Nazarian Alexander Peverett David Quiles Guill贸 Yoshi Sodeoka Joca Reiners Terron Emiliano Urbin Nicola Verlato Zimoun






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